PARTI(LHA)R



Uma sai só fraturas, hematomas e promessas de desespero. Contabiliza o tempo restante: não chega para comprar um plano novo, nem à vista nem a prazo. Conforma-se com o usado, aquele que nunca vestiu por não servir. Assombrada, percebe que agora o plano entra, e sem tolher os movimentos, sem exigir que ela se deite... Traças devoram roupas indelevelmente tatuadas. Não incomoda. Sem remorso, permite que o pó vista a casa de passado.
Até que um relâmpago revela: nem sempre quem fica é por que quer.
Quando deu por si, caminhava de novo. Podia até sapatear, se soubesse. As fraturas ainda doem, mas só quando o tempo esfria...

A cerca dos dias

Há dias em que abro um livro de poemas como quem abre um Oráculo: à espera da palavra suprema que me pacifique, que me explique para mim. E a palavra se nega. O verso me condensa a ponto de me fazer código. O verso sequestra meu sentido. Então me convenço de que nada tornará o dia especial. Será fuga falar do verso? Não. Não estou pronta para tocar na perplexidade pura do que sou. E não é mais prático me flagrar na teoria, porque mesmo nesta não há consenso, não há porto seguro.
Concluo, com isso, que minha agonia não é a ilha que me faz o movediço. Minha agonia é preferir o movediço. Por que me cerco de impalpável?
Nada se explica por si, tal qual espera minha indolência diante do enigma.
A incógnita não é a identidade, mas o desejo. Se eu pudesse cercar, com uma linha de esferográfica, o que quero, então eu saberia mais da metade do que sou. Daí a necessidade de escrever. Daí a incontinência do falar. Daí a ilusão do analista que me saberia mais que eu.
Na penumbra da festa
os velhos se escondem do tempo

(Inscrição para uma loja de spots)

Reunião de família

No perímetro do meu corpo
Ouço o arrastar das memórias
Meus móveis que sozinhos
Providenciam a mudança

Quanta ironia em ser eu
a levantar o lençol puído e morno
para acariciar as vergonhas
da família

Na diplomacia,
a paciência com a vileza
Na soleira da porta
a compaixão órfã

Quanta ironia em ser eu
o holofote no maniqueísmo
no maquinismo da vida
vida mediocremente emprestada
e perdida para o patrão

Ando indiferente entre meus móveis
Piso sem querer objetos
Garfo, faca, roupas dadas,
pipas, becos, vozes...
fotos que a enchente queimou

Nos meus olhos,
a lama de vários séculos
Entre os dedos
o pescoço do deus que nos servia
e já não serve

No perímetro do meu corpo
Em círculo, meio a medo
Todos me olham
como quem implora:
          - Cala-te!
          - Tritura teu mistério em segredo!

Calo-me.
E eles me comem as vísceras.

O poema não veio



O poema não veio
Saiu para trabalhar
Está caquético, raquítico, rabugento
O poema muda-nos de canal
Entediado da nossa frenética programação

Não, o poema não vem
Porque entre mágoa e desejo
Deita-se na bifurcação
Desnorteado com sua terna inutilidade.

Revolver



Entre escombros de palavras
E trincheiras de sentido
Encontrar o fio de Ariadne
Para perceber a nova paisagem
Ainda que seja um cenário de ruínas.
Me sangra o
que me foge
Fluido translúcido de
fonte irrastreável
Me sangra,
Me sangra na voz
esganiçada
as navalhas que estilhaçam sentidos

Que lugar posso reclamar?
Onde pertenço senão ao nome
que me cicatrizou desde a promessa do parto?

Ai de mim, que sou sem nome.
Ai de mim, que sou só nome!

No chão



Eu amo o mundo sem pieguice
Amo a crueza e virulência do que lateja
Amo o que apodrece e rasteja
Apesar do medo que me ensinaram

Colho a morte de cada dia
Nos frutos que os galhos desprezam.
Adivinho os bichos que me povoam
Sob a pele-camurça do lodo
Fabrico migalhas para os pássaros
Que nunca vêm...

Estaco
Diante da beleza adstringente do mundo

                                                               Mas sigo,
                                                               porque a poesia não me paga o aluguel!


Da volúpia



Cure-se da volúpia de estar deitada. Vista sua melhor puta e saia de si. Reinaugure o escárnio, o gozo, o riso/risco. Não caminhe, vente! Despenteie a moral, corrompa-a com seu perfume cítrico. 
E de manhã, quando recuperar seus limites, levante-se do tédio e esconda objetos pontiagudos, repletos de intenções coaguladas...